(...) Um jovem aproximou-se de Jesus e lhe perguntou: ‘Mestre, que devo fazer de bom para ter a vida eterna?’ Disse-lhe Jesus: ‘Por que me perguntas a respeito do que se deve fazer de bom? Só Deus é bom. Se queres entrar na vida, observa os mandamentos’:
- ‘Quais?’ perguntou ele. Jesus respondeu: ‘Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, amarás teu próximo como a ti mesmo’. Disse-lhe o jovem: ‘Tenho observado tudo isto desde minha infância.
Que me falta ainda?’ Respondeu Jesus: ‘Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me.’ Ouvindo estas palavras o jovem foi embora muito triste, porque possuía muitos bens” (Mt 19,16-22)
Jesus já vinha pregando há tempo, e era observado por multidões, entre as quais havia gente de todo tipo.
É provável que esse jovem já tivesse ouvido Jesus antes, e só agora sentira coragem de aproximar-se. Sim ou não, de qualquer maneira era alguém de sensibilidade espiritual. “Já faço tudo isto desde a infância”. O texto é claro.
Jesus tentou colher aquela vida para vinculá-la exclusivamente ao único Absoluto, Deus. Tanto que aconselha a vender tudo e dar o dinheiro aos pobres.
Ao mesmo tempo, “dar aos pobres” já mostra a direção horizontalizante do amor vertical, na opção pelo Absoluto de Deus.
A vocação do consagrado é a radicalização dos dois amores de Cristo. Não apenas de um. Do amor a Deus e do amor aos homens (Lc 10,27). É a radicalização daquilo que é marca de todos.
Aqui está a primeira característica da vocação consagrada. Radical
“Não quero abrir mão dos meus relativos”, mostra o jovem rico. E Jesus não o obriga, como não obriga ninguém. Deixa-o partir, embora triste, porque simpatizara com ele à primeira vista (Mc 10,21).
Aceitando aquela recusa, Jesus deixa claro que não força ninguém a se deixar escolher. Ninguém. Quer um “aceito” voluntário e livre.
E esta é a segunda marca da vocação consagrada. Ser livre.
Só chega à plenitude o vocacionável que livremente acopla-se com a graça de Deus, tornando-se um vocacionado. Graça invulgar, não há dúvida. Daí a lamentação de Cristo sobre quem a recusa. Perde uma relação incomum com ele por toda a vida. Escolhido que se negou à escolha, ao contrário do escolhido que se deixou escolher.
Lucas registra o caso de um outro vocacionável, igualmente instrutivo a quantos se encontram na mesma encruzilhada:
“A outro, Jesus disse: ‘Segue-me’. Mas ele pediu: ‘Senhor, permite-me ir primeiro enterrar meu pai’. Mas Jesus lhe disse: ‘Deixa que os mortos enterrem seus mortos; tu, porém, vai e anuncia o reino de Deus”(Lc 9, 59-60)
Claro que a dupla expressão “mortos” tem aqui o sentido de um trocadilho teológico, para impactar pedagogicamente.
Os primeiros “mortos” são aqueles que não fizeram a plena opção; que não optaram radicalmente pelo Reino de Deus. Os outros “mortos” são os mortais que falam ao nosso coração ou hão de falar um dia.
Jesus está lembrando: “Os que não se encontram engajados até às raízes, na aventura do Reino, farão este trabalho com o qual te preocupas.
“A esse preocupado, Jesus dirigiu as mesmas palavras ditas a Mateus e ao jovem rico. “Segue-me”. Mas ele, em vez de se levantar e fazer o que fez Mateus, quase tangenciou a reação do jovem rico. Deixa que eu espere meu pai morrer. Depois que eu o enterrar, conta comigo.”
Mas Jesus é taxativo. Recusando o argumento, expõe a concepção de amor do consagrado a esses dois grandes amores: o amor aos pais e o amor a ele. “Quem ama pai e mãe mais do que a mim não é digno de mim”. (Mt 10,37)
De um teste para qualquer discípulo, Jesus está fazendo a terceira marca de seus consagrados: prioritariamente cristológica.
No coração do consagrado autêntico o primeiro lugar é dele, intransferivelmente dele.
E como ele não aceita ser postergado, em nenhuma hipótese, faz decorrer, vinculativamente, desta terceira marca, uma outra: renúncia aos mais caros afetos, aos sentimentos mais legítimos.
Ninguém diz que amor de filho por pai não é legítimo. Ele mesmo citou ao jovem rico o amor aos pais entre os imperativos de todo amigo de Deus (Mt 19,19). Mas o problema de Jesus é a opção inequívoca e pronta por ele. “Presente, Senhor. Fala, que teu escolhido está decidido a fazer o que pedes.”
A renúncia aos mais legítimos amores liberta o coração para amar Jesus e todos aqueles que Jesus ama.
Se para o simples casamento, antes de ser sacramento, ainda quando era pura instituição divina, ficou clara a orientação de Deus: “Deixe o homem pai e mãe, e se una à sua mulher, para que sejam uma só carne”(Gen 2,24) - como haveria de ser mais diluído o amor no clímax do Reino de Deus?
Neste ponto os casados podem ajudar-nos a viver corajosamente nossa fidelidade vocacional. Quantos casos conhecemos em que um filho deixa “os mortos enterrarem seus mortos”, por causa de uma opção matrimonial...
A certo empolgado por segui-lo (Lc 9,57), Jesus percebe que se trata de um entusiasta romântico, e como quer cabeça no céu e pés no chão, usa a hipérbole didática, globalizante de tudo quanto um escolhido terá de renunciar na peregrinação: “As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”( Lc 9,58). Tinha sim. Era só ir a Betânia, a Cafarnaum, a Emaús - mas ele pessoalmente havia renunciado a tudo isto. Entretanto, pintou dessa maneira a renúncia consagrada, para libertar o coração inteiro.
Com tais palavras, Jesus confirma a quarta marca da verdadeira consagração. Renunciante.
Renunciante, desprendida, desapegada de tudo quanto não se enquadre no projeto consagrativo do Reino. Renunciar a ponto de dispor-nos a continuar fiéis a ele, ainda que venhamos a perder tudo.
O apóstolo Paulo entendeu perfeitamente esta renúncia proposta por Jesus. Não confessou que sabia viver na abundância e na penúria? (Flp 4,12). Isto é: permaneceria fiel à escolha de Cristo em qualquer circunstância. Jesus está atingindo o alicerce da vocação consagrada. A renúncia parece um valor negativo, mas é só na aparência.
Ela prepara o terreno para a sementeira e para as safras do Reino. Tudo o mais virá por acréscimo, ao consagrado que sabe renunciar como Cristo propõe. - “e nós que deixamos tudo, que receberemos em troca? - Vós recebereis o cêntuplo e possuireis a vida eterna”( Mt 19,29)
Sendo uma opção de fé, esperança e amor escatológico, como pode a renúncia ser negativa? Pode ser negativo o que é fruto das virtudes teologais?
Última marca
Depois de ter convidado o anterior, Jesus convidou um outro. E as reações de ambos são parecidas. O anterior estava preocupado com o pai. Este outro está preocupado com “as coisas de casa”, os teres e os haveres.
“Seguir-te-ei, Senhor, mas permite primeiro que vá resolver as coisas de minha casa.” Jesus, porém, lhe disse: “Aquele que põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus” ( Lc 9, 61-62).
A hierarquia deste não é a de Cristo para os seus consagrados. “Permite que eu vá primeiro...”
Jesus não abre mão do primeiro lugar no coração de nenhum escolhido. De nenhum. O primeiro lugar é irrestritamente dele, sem nenhuma exceção.
E ele aqui está novamente visando construir o alicerce de uma consagração permanente.
Jesus Cristo não faz escolha lunar, nem pretende vocações lunares; isto é, inconstantes como a lua.
A evidência da metáfora e o reforço do contexto sobre o texto dispensam exegese. “Quem põe a mão no arado e olha para trás não é matéria prima de consagrado”.
Alguém viu Jesus desertar do amor do Pai, fugir de sua vocação, capitular de sua consagração? Quando? Nem os fariseus puderam flagrar alguma hipotética lunaridade em Jesus. Do anjo do Natal ao anjo da Ascensão, a consagração de Jesus é permanente renúncia a tudo quanto não seja vontade do Pai.
Essa perenidade reflete a eternidade do amor de Deus como tão lindamente exprime o Salmista no sonoro refrão do salmo 136.
Se Deus nos ama desde toda a eternidade e por toda a eternidade, nenhum filho dele pode amá-lo apenas durante algum tempo, num segmento da existência que nos concede. Nenhum. Mormente os filhos consagrados pela especial escolha, grandes sinais do eterno amor de Deus.
Ainda que déssemos tudo, mas não por todo o tempo, Jesus recusaria tal resposta à sua escolha.
Com a metáfora do arado ele está colocando a última marca da consagração de seus escolhidos. É uma consagração que ele quer permanente.
Esta é a razão mística dos votos perpétuos. Somos escolhidos para sempre. Não devemos olhar para trás, depois de por no arado as mãos consagradas. Devemos enfrentar com total confiança em Jesus Cristo as surpresas da vida e da consagração. Qualquer surpresa.”( pp.14 A 17)
Deixamos correr livre o texto de João Mohana, para que pudéssemos usufruir de seu estilo criativo e simples. Uma autêntica vocação, segundo nos explica nesta seqüência, é: 1. Radical; 2. Livre; 3. Prioritariamente cristológica; 4. Renunciante; 5. Permanente.
É sempre útil usarmos estes critérios para avaliar a autenticidade da vivência vocacional, tanto nossa como de nossos formandos. Através da vivência mais ou menos intensa destas características vocacionais, poderemos nos antecipar e prever as crises que, não raro, acontecem entre os vocacionados, evitando que se agravem e o machuquem seriamente.
Por outro lado, nós, formadores, somos elementos essenciais para que estes critérios sejam seguidos pelos nossos formandos. Em primeiro lugar, por nossa própria vida, em segundo lugar, pela caridosa condução para que todos e cada um viva estes aspectos fundamentais. É terrível o formador que não enxerga estes aspectos, sempre com base na caridade fraterna, mas também na firmeza e real desejo de ver o formando crescer e não somente “resolver o problema do dia”.
Mais uma vez, estamos lidando com algo que não é nosso, mas de Deus e do irmão (a vocação) e com alguém profundamente amado por Deus e ansiosamente esperado por ele no céu... depois de passar por nossas mãos!
Fonte: Continua Mohana:
Marcas da consagração cristã
http://www.comshalom.org/formacao/vocacao/Carismas%20de%20Funda%E7%E3o.doc
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