sábado, 5 de outubro de 2013

O anjo não tem percepções, não pode sentir o cheiro das plantas, não pode ver a beleza dos pores do sol, não pode ouvir a música nem saborear o prazer dos alimentos.

Os anjos existem, afirma a revelação, e o seu conhecimento, como veremos, é responsável por muitos dos fenómenos paranormais. Ninguém conhece o instante concreto em que Deus pronunciou estas palavras:“faça-se Luz”, fazendo sair do nada essas miríades de criaturas chamadas anjos. Se já estivéssemos presentes nesse instante em que começou o tempo, não nos aperceberíamos de nada, porque o anjo não é visível aos olhos materiais.

Ele é luz, não no sentido próprio da palavra, mas no sentido metafórico: é puro espírito, sem qualquer mistura com a opacidade da matéria. Para nós, é muito difícil compreender verdadeiramente o que é uma realidade puramente espiritual, como vive uma pessoa que não tem corpo. A nossa linguagem é feita para falar das coisas materiais. Para compreender um anjo, é preciso esforçar-nos para eliminar dele toda a faculdade dependente de um órgão.

O anjo não pode comer, beber, reproduzir-se. Todas as funções vitais vegetativas são inexistentes nele. Mas é preciso eliminar também, toda a possibilidade de uma vida psíquica. O anjo não tem cérebro e, portanto, não pode exercer as faculdades que constituem a riqueza da sensibilidade humana e animal.

O anjo não tem percepções, não pode sentir o cheiro das plantas, não pode ver a beleza dos pores do sol, não pode ouvir a música nem saborear o prazer dos alimentos. Faz parte de um outro mundo, de uma outra dimensão diferente da nossa. O anjo não tem memória sensível. É-lhe impossível decorar conhecimentos como nós o fazemos.

Aliás, isso é-lhe perfeitamente inútil, uma vez que o seu conhecimento é bem superior àqueles. Não tem também a faculdade de imaginar: impossível para ele, fechar os olhos e representar-se uma paisagem, como se sonhasse. Mas o mais espantoso para nós, é que é preciso expulsar da vida dos anjos toda a paixão. A paixão é um amor que nos conduz na direcão de uma realidade sensível. O homem e o animal são seres apaixonados, capazes de se inflamarem por causa dos belos olhos do sexo oposto. O anjo não pode enamorar-se desta maneira.

Não conhece os encantos destes amores senão porque é inteligente e não porque os experimente. Amor passional e ódio, desejo e fuga, tristeza e prazer, medo e audácia, esperança de um bem sensível ou desespero, eis toda uma série de sentimentos impossíveis aos anjos. Assim, quando falarmos mais adiante, como se os anjos tivessem paixões, será num sentido metafórico, para melhor exprimir as reações da sua inteligência e da sua vontade.

Que pode então fazer o anjo? Qual a sua vida? Não lhe restam senão as faculdades vitais que ultrapassam a matéria, as que não têm necessidade de um órgão para se exercerem: a inteligência e a vontade. Não se trata da inteligência dos animais, que lhes permite encontrar soluções engenhosas para viver melhor e sobreviver, ou para melhor se reproduzir. Trata-se da inteligência no que ela tem de especificamente espiritual, aquela que é capaz de conhecer tudo quanto é conhecível, de penetrar a natureza das realidades. A inteligência dos anjos é perfeita.

É feita de tal modo que pode conhecer imediatamente a essência de todas as coisas. Penetra a natureza de tudo quanto existe (exceto Deus, que a ultrapassa demasiado para ser conhecido), de uma forma direta e intuitiva. Não tem necessidade, como a nossa inteligência, de se apoiar previamente sobre um conhecimento sensível.

O mesmo se passa quanto à vontade. O anjo não possui essa vontade dos animais que os leva à procura do que pode satisfazer as suas necessidades. A vontade do anjo é a sua inteligência que dirige aquilo que compreendeu como um bem. Quando o anjo ama, não é porque foi seduzido pelos encantos de uma realidade, mas porque compreendeu a bondade dessa realidade. Não tem a capacidade de se emocionar, não que seja insensível como o são certos intelectuais humanos de coração contraído, mas porque não possui sensibilidade.

Por esta razão, a liberdade dos anjos é perfeita. Não está submetida a nenhum limite, como a nossa. Não tem corpo que o leve numa direcção outra que a da sua vontade. Não é como nós, divididos entre os desejos contraditórios dos instintos. Não sofre qualquer influência do meio social, porque se basta a si mesmo. O que quer é o que compreendeu como sendo o bem absoluto e volta-se totalmente para ele, simplesmente, sem voltar atrás, sem erro possível. Foi assim que Deus criou os anjos, a sua primeira obra. Criou-os sem número, miriades, diz a Bíblia.

Santo Agostinho, e depois, no seu seguimento, S. Tomás de Aquino, perguntaram-se se os anjos, uma vez criados, tiveram de aprender como nós, os diversos conhecimentos que lhe eram necessários. Quando nasce um homem, não sabe nada. A sua inteligência é como uma tábua sobre a qual nada está escrito. Graças às sensações, a criança começa a aprender e não parará de aprender até ao fim da vida, elevando-se pouco a pouco do sensível (este cão, este gato) ao espiritual (a beleza, a verdade, a bondade etc.).

Mas o anjo, não tendo sensações, não pode aprender desta forma. Deus deu-lhe, ao criá-lo, o conhecimento de tudo quanto precisava para a sua vida de anjo. Os anjos foram criados adultos e, no próprio instante em que saíram do nada, compreenderam-se por completo.

Cada anjo, por natureza, é diferente dos outros, segundo os graus recebidos por Deus. Cada anjo é um pouco como um diamante muito puro que não se pode comparar a nenhum outro diamante. Entre eles, o mais belo, o mais parecido com Deus chamava-se Lúcifer, o “porta-luz”. Lúcifer era um Querubim resplandecente, obra-prima e objecto de admiração de todos os outros anjos. “Deus viu que a luz era boa”, comenta simplesmente a Bíblia.
 
Neste primeiro instante da criação, todos os anjos eram bons. Lúcifer, pela sua beleza, pela grandeza do seu ser, era a obra-prima de Deus. Os outros anjos não sentiam inveja. Bem pelo contrário, ao contemplarem a sua perfeição, ficavam como uma ideia da infinita grandeza do Deus escondido que acabava de os criar. Todos os anjos amavam Deus, afirma S. Tomás de Aquino. Não sentiam senão reconhecimento por aquilo que acabavam de receber da sua mão: a existência, a vida, a beleza. Este espectáculo da criação, fazia-os cantar a uma só voz: “Glória a Deus nas alturas.”
 
Se o amavam, no entanto, não podiam conhecê-lo senão de longe. Mesmo o mais inteligente dos anjos. Deus permanece o Mistério por excelência. A inteligência dos espíritos celestes bem pode ser superior à nossa, mas permanece limitada. Ora, o que é limitado, não pode compreender o que é sem limites. Como é que um vaso finito (o anjo) poderia conter o Infinito (Deus)? Isso, os anjos sabiam-no. Contentavam-se, pois, em conhecer Deus de longe, através dos efeitos do seu poder. Ao olharem-se a si mesmos, ao olharem os outros anjos, viam, como num espelho, o reflexo longínquo de Deus. O que é interessante notar, neste primeiro estado do mundo, é que ele era hierarquizado. O maior de todos era o que tinha o espírito mais aguçado. Lúcifer era o Príncipe dos anjos, sem contestação, porque era o mais inteligente. Ninguém contestava esse facto. Esta hierarquia e esta vida pacífica e contemplativa, agradava-lhes. O mundo poderia ter permanecido assim para a eternidade.
 
No entanto, a fé católica e a Sagrada Escritura afirmam que esta felicidade natural não durou. Houve uma quebra, um cisma terrível, no céu angélico. Apoiando-se nas poucas alusões que explicam este facto na Bíblia, os teólogos e os santos, conseguiram reconstituir a história deste drama primitivo, que fez de Lúcifer o príncipe dos anjos revoltados contra Deus, o príncipe dos demónios.
 
Enquanto a criação estava ainda vibrante da sua novidade, quando os anjos acabavam de descobrir num olhar, a sua magnífica beleza, acabavam de se voltar para o seu Criador num movimento de reconhecimento, Deus falou. Não se trata de uma palavra feita de palavras articuladas. Trata-se antes de um pensamento, de uma revelação transmitida directamente à inteligência de cada anjo, à maneira de um relâmpago luminoso.
 
É o conteúdo desta revelação primeira, que provocou este primeiro drama da criação. Esta palavra foi, com efeito, sinónima para eles, de prova. Trata-se de uma prova muito difícil de compreender para nós, porque é de ordem estritamente espiritual. No entanto, é indispensável, no âmbito desta obra, perceber o seu conteúdo, porque ela constitui um começo que ilumina muitos dos fenómenos paranormais, particularmente aqueles que encontram a sua origem nos demónios. Deus fala, pois, à maneira de um relâmpago que rasga os céus.
 
Para compreender melhor, podemos decompor em três partes a revelação que Ele fez. Deus disse: “Criei-vos a fim de que me vísseis face a face”. Esta primeira revelação é perturbadora para um anjo, bem mais que para um homem, porque o anjo tem a capacidade de captar imediatamente todo o seu alcance. Ver Deus face a face significa para eles o inimaginável, o impensável. Era-lhes impossível, mesmo a eles, desejar simplesmente tal felicidade. Sabiam bem melhor que nós a infinita profundidade do mistério divino e o limite das suas capacidades intelectuais. Ver Deus face a face, significava compreender o seu Mistério em plenitude, com o próprio olhar com que Deus se compreende. Significava viver da própria felicidade de Deus. Ora, tal coisa era impossível, da mesma forma que é impossível colocar toda a água do mar dentro dum copo. A Bíblia dá testemunho desta incapacidade natural das criaturas em ver o Criador[31]: “Ninguém pode ver Deus face a face sem morrer”. No entanto, as legiões angélicas tinham ouvido bem: “Criei-vos para que me vísseis face a face”. Acreditaram, aderiram a essa palavra de Deus, apesar do seu carácter ilógico, sabendo que nada é impossível a Deus. Acreditaram na possibilidade de uma vida sobrenatural. Lúcifer foi o primeiro a acreditar.
 
Com ele, os serafins, os querubins e todas as ordens celestes, acreditaram em Deus e desejaram ver realizada esta promessa. Esta adesão chama-se fé. Mas já neste primeiro instante, Deus sabia que Lúcifer acreditava por um outro motivo que o arcanjo Miguel. Lúcifer acreditou porque sabia que Deus pode realizar o que diz. Miguel acreditou porque o amava.
Fonte: extraído na íntegra do livro Arnaud Dumouch que ensina teologia católica na Bélgica, formado na escola de S. Tomás de Aquino e de Santa Teresa de Ávila.
 

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