Este ano começamos a rubrica da catequese por enveredar pela virtude da Caridade. Todas as virtudes são dons de Deus, e mais do que formas para cumprir normas morais, são meios que Deus nos concede e inspira para fortalecer e ajudar no nosso caminho em direção ao Pai. Há homens e mulheres que nos ensinam, com o seu testemunho, que é a caridade.
Uma mulher como Madre Teresa de Calcutá e um homem como o Padre Américo foram pessoas simples que ainda que não tenham salvado todos os pobres de Calcutá ou todas as crianças de Portugal, ajudaram milhares, e as suas obras espalharam-se rapidamente por todo o mundo. Em união com Deus, pela fé e graça, ambos conseguiram mover montanhas.
Na verdade, partindo daquilo que somos e da nossa realidade concreta, pouco conseguimos fazer se Deus não nos auxiliar com a sua graça. Podemos ler claramente no Catecismo Jovem: «Deus apoia as virtudes humanas com a Sua graça e concede-nos, para além disso, as chamadas virtudes teologais, com cuja ajuda atingimos seguramente a luz e a proximidade de Deus.» (in Youcat, N.º 299)
Sobre a Caridade, Bento XVI, na sua Encíclica Caritas in Veritate, revela-nos que «o amor – caritas – é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz». E pouco depois acrescenta o alcance deste amor corajoso e generoso, que se realiza em verdade e liberdade: «Cada um encontra o bem próprio, aderindo ao projeto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, é em tal projeto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre (cf. JO 8,22).»
O testemunho de Abbé Pierre
Há precisamente cinco anos, em janeiro, morreu Abbé Pierre, um padre francês talvez pouco conhecido em Portugal, mas marcante para vida dos pobres da França em pleno séc. XX.
A França recuperava da Segunda Guerra Mundial e todo o país estava fragilizado. Nessa altura, aconteceu na vida deste sacerdote uma história que o marcou para sempre.
Abbé Pierre construía uma casa que se destinava a receber os jovens, e um dia, foi socorrer um homem que acabara de tentar por termo à sua vida. Ao perguntar-lhe porque tinha realizado tal coisa, o homem respondeu-lhe: «Sou ex-presidiário e por isso, ninguém me dá trabalho.» Face a esta realidade, Abbé Pierre convida-o logo para o apoiar na ajuda a quem precisa. O ex-presidiário chamava George Legaey, e a partir de então passou a ser o braço direito de Abbé Pierre.
Pouco tempo depois, um rapaz fugido do reformatório vem ao encontro de Abbé Pierre pedindo ajuda. Este acolheu-o sem fazer muitas perguntas. Rapidamente outros juntaram-se, e até famílias inteiras, de tal modo que Abbé Pierre, em conjunto com eles, fundou a Comunidade de Emaús. Esta comunidade era uma alternativa de vida para os pobres.
Mais que uma filosofia de vida ou uma escola, era e é ainda hoje um meio para levar alguma dignidade a quem precisa: «Servir, antes de si próprio, o que é menos feliz. Servir em primeiro lugar o que mais sofre.» É esta a lei que conduz a obra. Uma obra nem sempre compreendida, dado que os seus elementos são marginais, mas que sempre se recusara a aceitar apoios do governo ou de instituições.
A grande criatividade da Comunidade de Emaús está no modo como pobres e sem-abrigo, principais beneficiários, se tornam os seus principais intervenientes. Através da recolha de lixo, de imóveis e depois na venda destes materiais ou na entrega para reciclagem, conseguem assim angariar o dinheiro para poderem sobreviver. É uma comunidade que não faz seleção de pessoas, pois a aceitação é incondicional. Quem precisa é apoiado.
Redescoberta da caridade
Abbé Pierre fala-nos em Testamento sobre o que significa a Comunidade de Emaús: «Poder-se-ia pensar que Emaús é um modelo de vida. Seria uma ilusão, pois as comunidades acolhem uma humanidade destruída – o vagabundo, o homem que acaba de sair da prisão, o homem cujos laços familiares foram rompidos, etc. – que vai, para começar, ter de recuperar um mínimo de solidariedade. E quando esses homens recuperam a sua dignidade, a sua auto-estima, descobrem que o produto do seu trabalho pode ser partilhado com os que não têm, como eles, o necessário para viver.»
O que cada um dos companheiros de Emaús vive é uma redescoberta da caridade. Quando ajudam o próximo na partilha, depois de terem sido auxiliados também, acende-se uma centelha de caridade e esperança no seu interior, e a sua vida ganha um horizonte mais vasto – acima de tudo, a vida ganha um sentido.
São Damião, um padre belga, observou de forma extrema como esta ausência de sentido de vida pode destruir pessoas e uma sociedade. Partiu para Molokai, uma ilha do Havai, cuja população, em 1873, era maioritariamente de leprosos devido à lei de obrigatoriedade. Os leprosos viviam numa pequena vila chamada Kalawao e eram cerca de 1200 pessoas, entre as quais mulheres e crianças. Havia a necessidade de cuidar pastoralmente dos leprosos daquela ilha, e por uma vontade inexplicável, o então Padre Damião ofereceu-se e foi nomeado para Molokai.
Ao chegar àquele lugar, Damião viu que os leprosos não só tinham uma aparência terrível como viviam em condições miseráveis. As cabanas eram frágeis, não havia higiene e os tratamentos das chagas dos mais doentes não se realizavam. Como naquela vila recebiam roupas e comida das autoridades, os leprosos mais capazes não trabalhavam, passando o tempo com distrações. Além disso, ali não havia lei e o desrespeito e a violência de uns para com os outros reinava ao sabor das discussões.
Na verdade, os leprosos sabiam que a sua doença era mortal e, por essa razão, haviam perdido qualquer esperança. Pouco importava se morreriam ou não em dignidade, pouco importava aquilo que fizessem, pois em nada mudaria o seu destino.
Perante este cenário, Damião lançou-se no cuidado daquelas pessoas. Foi o seu pastor espiritual, mas foi também médico nos tratamentos, engenheiro nas construções das cabanas e das infra-estruturas daquela vila, operário nos trabalhos de construção, agricultor nos campos, foi o grande amigo, o pai e o irmão de todos aqueles leprosos.
Em alguns meses, Kalawao estava irreconhecível. Os leprosos trabalhavam para se alimentar e já teciam as suas próprias roupas. Nas suas vidas, redescobriram a caridade com o exemplo daquele padre. Cedo estavam livres da escravidão de uma vida sem sentido. E ali, num lugar apelidado de morte, acendera-se em cada coração uma luz de esperança.
No último dia de janeiro comemora-se o Dia Mundial dos Leprosos, uma doença que se encontra quase erradicada do mundo. No entanto, subsiste, entre outros males, o da pobreza, que, como uma doença incurável, teima em não desaparecer e tudo indica que ela está a alastrar, atingindo cada vez mais pessoas. Como leprosos, os pobres são subtilmente afastados e mais que nunca, nas palavras de Abbé Pierre: «Precisamos de agentes de contágio. Nenhum valor humano pode crescer nem transmitir-se sem contágio.»
Para concluir, deixamos uma questão para reflexão do nosso leitor: Consegue, na sua vida, contagiar os outros pela caridade?
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