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Lembro-me do tempo em que quem queria ser santo tinha de ser padre ou freira.
Não havia opção de santidade fora essa. E – vantagem das vantagens! – este
estado de vida era garantia quase total de céu. Era por volta de 1964 e eu
conversava muito com a freira responsável pela livraria do meu colégio.
Como
não tinha dinheiro para comprar as revistas sobre a vida dos santos – e como
ela estava interessada em me “fisgar” para ser lourdina - permitia-se uma
pequena infração: passava-me, disfarçadamente, uma vez por mês, uma revista em
quadrinhos que contava a vida do santo do mês, desde que me comprometesse em
ler sem amassar as folhas e devolver no dia seguinte.
Revista oculta no fichário, lá ia eu, com ar de inocente e me sentindo privilegiada, aprender o que, para a época, significava ser santo: sofrer, sofrer muito, muito mesmo e deixar tudo para seguir Jesus como padre ou freira. Não havia outra maneira de seguir Jesus. Tinha-se, sobretudo, que não se casar.
Os exemplos de pessoas casadas que se haviam tornado santos resumiam-se, que eu
me recorde, a Santa Rita e Santa Beatriz, que se haviam casado obrigadas pelos
pais, pois desejavam a virgindade que, na época, era o sinônimo mais corrente
para castidade e pureza. Ora, estas duas santas tiveram de sofrer horrores, com
seus maridos adúlteros, grosseiros, beberrões, incrédulos, blasfemos. Santa
Rita vê morrer os dois únicos filhos e também o marido. Fica, assim, “livre” do
que lhe estorva a vocação e consegue, através de um milagre, ingressar no
convento, onde, depois de muito sofrer torna-se santa.
Beatriz, uma vez morto o marido que lhe impedia a caminhada para a santidade, deixa com a mãe uma filha doente mental e, para fundar sua congregação, passa sobre o corpo da mãe que se havia deitado na soleira da porta para impedir sua saída. Seu outro sofrimento, além do marido e do casamento, era ser extremamente bela e perseguida durante toda a vida pela inveja à sua beleza. No rol das belas figurava também Santa Cecília que, embora desejosa de permanecer virgem, viu-se obrigada a casar-se e tornou-se santa graças ao martírio.
Hoje em dia, as mesmas histórias, das mesmas santas, não seriam contadas da mesma forma. Mas naquela época, era assim que eram narradas. Até o Vaticano II, findo em 1965, o que vigorava, além da famosa missa em latim, era: leigos não têm nenhum papel na Igreja, os padres são superiores aos religiosos, que são superiores às religiosas, que são superiores aos virgens consagrados que são superiores – com grandes vantagens – aos leigos, especialmente os casados. Na mentalidade daquela época, quem se casava podia até lucrar um naco de céu, mas graças ao mérito dos que entregavam sua vida a Deus como padre ou freira, religioso ou celibatário.
Era graças a eles que os leigos, mormente os casados,
podiam pensar em ter alguma chance, não de serem santos canonizados, mas de se
salvarem e passarem a eternidade em algum cantinho esquecido do céu, reservado
aos de segunda categoria.
Esta mentalidade era alimentada por outro absurdo: a crença de que quem se casava fazia-o por ser por demais fraco, por não resistir aos apelos do sexo, por não ter têmpera bastante para o sacrifício e renúncia à atividade sexual por amor a Deus. Era esta a interpretação que se dava a I Cor 7,8:
“Aos
solteiros e às viúvas digo-lhes que é melhor ficar como eu. Porém, se não podem
conter-se, casem-se: e melhor casar do que abrasar-se.” Naquela época, como já
disse, virgindade e castidade eram a mesma coisa. Só era casto quem era virgem.
Quem era “fraco” e casava-se não tinha como permanece casto, uma vez que o ato
conjugal era sinônimo de falta de castidade e o amor humano era visto como um
“roubo” ao amor exclusivo a Deus, um perigoso divisor de corações. A mediação
humana do amor de Deus e a Deus não era sequer considerada na época.
Segundo esta visão, aquele que permanecia virgem vivia o sexto mandamento, os casados o infringiam. Os virgens eram, portanto, superiores em santidade aos casados, eram mais perfeitos do ponto de vista moral, menos susceptíveis ao pecado, eram “puros”, esposos de Jesus e não de homens. A Ele amavam com amor superior, sem divisões, sem intermediações do amor humano.
Hoje em dia, para os mais esclarecidos, tal mentalidade parece piada. No entanto, escondido atrás de alguma porta, ainda se pode encontrar, 40 anos depois do Concílio e duas décadas após a Familiaris Consortio, quem pense assim ou traga, ainda, o ranço desta visão que não corresponde, de forma nenhuma ao que hoje pensa a Igreja.
Era desse jeito que eu pensava a cada mês quando ia devolver minhas revistas não dobradas à freira da livraria, com o coração e a cabeça cheios de sonhos de heroísmo, martírio e santidade. Queria ser santa, ir para a África, continente para cujas missões meu grupo de “cruzadinhas” fazia sacrifício e angariava esmolas. Sonhava, de preferência, morrer por lá, cozida em algum caldeirão dos pigmeus incréus, porque sofrer longamente não era comigo.
Meu coração
adolescente preferia o heroísmo grandioso àquele escondido, de cada dia. O
casamento se me afigurava como um mal necessário à preservação da espécie e que
traz, inexoravelmente, grande sofrimento, após o qual, se tivesse sorte,
ficaria livre para me tornar freira e, assim, santa. Você não imagina, assim,
minha tremenda decepção quando, um belo dia, minha amiga freira,
interessadíssima em minha vocação para lourdina, me disse, com clareza: “Maria
Emmir, porque você não começa a rezar pelo rapaz com quem se casará?”
Horror! Frio na barriga! Decepção! Havia sido recusada ainda na fila para uma vaga no time da santidade! Era tímida demais para perguntar o porquê da recusa (sim, já fui tímida um dia!) e, convencida de que eu era uma cristã de segunda categoria, comecei a rezar, resignada, um terço por dia pelo rapaz com quem me casaria. Era amiga de Nossa Senhora e ia à missa sempre que podia e todos os domingos, mas havia enterrado meu sonho. Não tinha mais como ser santa, pois era destinada ao time dos fracos, dos que se casam, dos que são impuros, dos que não têm acesso aos altares.
Foi com esta mentalidade que comecei minha amizade com o jovem Moysés, comendo, resignada, as migalhas da mesa dos filhos, aquelas que sobram para os cachorrinhos. Uma vez que ele e os que podiam ainda ser santos abraçassem seu ideal, eu pularia fora. Teria cumprido minha missão de casada “impura”: ajudar os “puros”, os “virgens” a alcançar a santidade.
Quase cai para trás quando, ao
delinear-se pouco a pouco a comunidade, ouvi do Moysés que haveria lugar para
os casais, para as famílias, para os casados. Enlouqueci durante várias semanas
ao ler, no que hoje chamamos “Escritos” que o amor esponsal era para todas as
idades, para ambos os sexos, para todos os estados de vida. Também para os
casados!!!
Lembro-me de ter perguntado várias vezes ao Moysés, se ele tinha certeza do que dizia, se, realmente, a oração profunda e o amor esponsal eram para todos. Estávamos, então, a vinte anos do Concílio Vaticano II e eu, com minha mentalidade pré-conciliar, ainda me chocava em pensar que “os meninos do Shalom” poderiam namorar e até casar-se e continuarem a desejar ser santos. Ainda me sentia um extra-terrestre, com a terrível sensação de vir a estragar, com minha presença de casada, a obra que Deus queria fazer.
Lembro-me de ter perguntado várias vezes ao Moysés, se ele tinha certeza do que dizia, se, realmente, a oração profunda e o amor esponsal eram para todos. Estávamos, então, a vinte anos do Concílio Vaticano II e eu, com minha mentalidade pré-conciliar, ainda me chocava em pensar que “os meninos do Shalom” poderiam namorar e até casar-se e continuarem a desejar ser santos. Ainda me sentia um extra-terrestre, com a terrível sensação de vir a estragar, com minha presença de casada, a obra que Deus queria fazer.
O pior é que não
faltavam homilias que reiterassem minha mentalidade tridentina, a ponto de, um
dia, ter de retirar-me da missa a tentar conter o choro diante das acusações
por minha leviandade em participar de uma comunidade. Dei trabalho ao Espírito
Santo e ao Moysés que me tentavam convencer do contrário: a santidade, a oração
profunda, o amor esponsal eram para todos, absolutamente todos, inclusive os
casados.
Hoje, plenamente convencida, sou alimentada pela exegese mais moderna de I Cor 7,7. O casamento é um carisma. O celibato é outro carisma: “desejaria que todos fossem como eu; só que cada um recebe de Deus o seu carisma, alguns este, e outros aquele”, diz a tradução mais atualizada. Sou iluminada pelo Magistério, que considera casto aquele que vive a virgindade consagrada, mas também aquele que vive o matrimônio segundo o Evangelho e a Igreja.
Hoje, plenamente convencida, sou alimentada pela exegese mais moderna de I Cor 7,7. O casamento é um carisma. O celibato é outro carisma: “desejaria que todos fossem como eu; só que cada um recebe de Deus o seu carisma, alguns este, e outros aquele”, diz a tradução mais atualizada. Sou iluminada pelo Magistério, que considera casto aquele que vive a virgindade consagrada, mas também aquele que vive o matrimônio segundo o Evangelho e a Igreja.
Sou sustentada pela vocação que
abre o amor esponsal a Jesus Cristo não somente aos celibatários mas também, e
em igual medida, aos casados. Sou alimentada por São João da Cruz que define a
santidade como vivência da caridade e unidade com a Trindade por participação
no amor.
Sou consolada pela amizade e partilha acerca da vida espiritual e do
amor esponsal com senhoras e senhores casados da parte de João da Cruz e de
Teresa de Jesus. Sou surpreendentemente inspirada por Raniero Cantalamessa que,
com base nos padres da Igreja vê no ato conjugal e vivencia familiar uma
expressão da vida de amor intratinitária e de seu constante e eterno movimento
de kénosis e koinonia, de dar-se e acolher o outro e assim ser um com ele.
Hoje, suspiro, aliviada, ao ler os escritos de minha vocação sobre sermos, todos, almas esposas de Jesus e ao ouvir de santos vivos como Chiara Lubich que Deus virginiza pelo amor os que vivem castamente seu matrimônio e os que direcionam castamente sua vida para a caridade. Alegro-me com Teresa de Calcutá que aponta o amor à família como meio incomparável de santificação, fazendo eco a João Paulo II, que redefine santidade não como pureza moral ou impecabilidade, mas como ilimitada e sempre renovada confiança na misericórdia de Deus.
Foi-se o tempo, graças a Deus, em que, para ser santo era preciso, sobretudo, não casar-se. Hoje, lembro-me da pequena freira da livraria e vejo nela uma profetiza não só para o discernimento de minha vocação pessoal como para toda uma geração de cristãos leigos, chamados a viver o sacerdócio comum do seu Batismo independente de seu estado de vida.
A esta irmãzinha, de cujo nome não
me lembro, vestida de beije com uma longa faixa azul à cintura, filha de Nossa
Senhora de Lourdes, devo muito mais do que posso expressar. Devo minha
felicidade conjugal e o abraçar, de certa forma profeticamente, a vocação que
abriu a todos os estados de vida, rasgadamente, preto no branco, a oração
profunda e o amor esponsal a nosso Senhor Jesus Cristo.
Sim, foi-se o tempo em que casar significava renunciar a nada mais nada menos do que a santidade. Podemos nos casar, se este for nosso carisma, e, abraçando nosso chamado, sermos santos pela misericórdia de Deus, pela vivência da caridade, da fé e da esperança, pela correspondência ao amor esponsal de Jesus Cristo, nascido em uma família humana. Foi-se o tempo, graças a Deus
Emmir Nogueira
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